Thursday 7 June 2007

O Planeta das Peugas Rotas, para a Gi

O Planeta das Peúgas Rotas

Nestes últimos dias, fui brigando com o tempo para alinhavar esta intervenção. Um colega meu surpreendeu-me sugerindo o seguinte: "Tu já fizeste uma comunicação chamada 'Os sete sapatos sujos'. Porque não escreves agora uma coisa chamada: as sete peúgas rotas?"

Aquilo não seria mais que um gracejo passageiro, mas quando cheguei a casa, abri uma revista e deparei com uma foto extraordinária ddo Presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz. O homem está sem sapatos na entrada de uma mesquita na Turquia e saltas à vista os dedos dos pés espreitando das meias furadas. A fotografia deu volta ao mundo e quem sabe, tratando-se de quem se trata, seja amanhã uma espécie de uniforme obrigatório para os banqueiros e bacários de do inteiro planeta.

De qualquer modo, entre a piada do meu colega e a fotografia da revista havia uma invulgar coincidência e acabei chamando a este texto "O Planeta das Peúgas Rotas".

A revista que reproduzia as fotos pretendia explorar o lado ridículo e caricato da situação. Para mim, porém, aquele flagrante apenas tornava um dos homens mais poderosos do mundo numa criatura mais próxima, mais humana. Quer dizer, o sapato pode ser muito diferente. Mas o dedo gordo que espreita da peúga do banqueiro é muito parecido com o dedo do mais pobre dos moçambicanos. Tal como qualquer um de nós, o Presidente do Banco Mundial esconde mazelas debaixo da sua composta aparência.

Os responsáveis do Millemmium bim disseram que o tema desta palestra era livre mas sugeriram, ao mesmo tempo, que eu falasse da Pessoa Humana. As peúgas descosidas podem, de repente, nos revelar mais humanos e tornamo-nos mais parecidos com alguém como o Presidente do Banco Mundial.

E começarei por contar um episódio que nunca contei em público e cuja revelação neste espaço me pode custar muito caro. Quem sabe se, depois de partilhar este segredo, acabarei por ver anuladas as minhas contas e me converterei eternamente numa
persona non grata para as finanças nacionais?

Aconteceu logo a seguir à independência. Eu estava em véspera de viagem para o exterior e, na altura, não havia as facilidades de que hoje usufruímos. O mais que um viajante poderia dispor era do chamado
traveller cheque. Para se emitir um traveller cheque era uma batalha complicadíssima, era quase necessário que o pepido fosse conduzido ao Presidente da República. Eu ia viajar por imperiosas razões de saúde e faltavam escassas duas horas para o embarque de avião e ainda eu estava no balcão do Banco numa desesperada tentativa de recolher os meus pobres cheques. No momento, um funcionário vagaroso me disse algo trágico:que os cheques, afinal, precisavam de duas assinaturas, a minha e a da minha esposa. Ora, a minha esposa estava no Hospital e não havia tempo para lhe levar os papéis. A única solução chegou-me no auge do desespero. Eu tinha que mentir. Disse ao funcionário que a minha esposa estava na viaturae que, em menos de um minuto, lhe traria os papéis já devidamente assinados.

Trouxe os documentos para fora do edifício e, à pressa, falsifiquei a assinatura da minha esposa. Fiz aquilo sobre pressão dos nervos e sem ter à minha frente um modelo para copiar. A rúbrica ficou péssima, era uma cópia ranhosa, detectável a milhas de distância. Regressei correndo, enteguei a papelada e fiquei à espera. O homem entrou para um gabinete, demorou um pouco e, depois, voltou com ar grave para me dizer: desculpe, há uma assinatura que não confere. Eu já esperava aquilo mas, ainda assim, desmoronei, sob o peso da vergonha. O melhor, pensei, é falar a verdade. E já tinha começado a falar, é que, camarada, a minha esposa... quando o funcionário me interrompeu para dizer esta coisa espantosa: a assinatura da sua esposa está certa, a sua assinatura é que não confere. Como podem imaginar, fiquei sem palavra e passei os minutos seguintes ensaiando a minha própria assinatura ante o olhar desconfiado do funcionário. Quanto mais tentava menos era capaz de imitar a minha própria letra. Nesses longos minutos eu pensei: vou ser preso não por ter forjado a assinatura de outra pessoa. Vou ser preso por forjar a minha própria e autêntica rúbrica.

Conto esta história porque o tema que me sugeriram para falar aqui é sobre a pessoa humana. Nessa altura, perante os malfadados
travellers cheques, eu senti essa experiência curiosa de alguém que é surpreendido em flagrante delito de ser ela própria. A verdade é que nós somos sempre não uma, mas várias pessoas e deveria ser norma que a nossa assinatura acabasse sempre por não conferir. Todos nós vivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando a nossa personalidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, o mais triste é ter mesmo de escolher.

Caros amigos

As palavras moram tão dentro de nós que esquecemos que elas têm uma história. Vale a pena interrogar a palavra "pessoa" e é isso que começo por fazer, de modo simples e sumário. A palavra "pessoa" vem do grego antigo
Persona. Este termo Persona tem a ver com máscara, tem a ver com Teatro. Persona era o espaço que ficava entre a máscara e o rosto, o espaço onde a voz ganhava sonoridade e eco. Na sua orige, a palavra "pessoa" referia um vazio que era preenchido por um fingimento, o fingimento do actor que, tal como eu perante o traveller cheque, representava um outro personagem. Veremos que não estamos longe, em que nos escondemos por trás de um máscara na encenação dessa narrativa a que chamamos vida.

Nas línguas do Sul de África, a palavra "pessoa" é uma categoria particularmente interessante. Um linguista alemão notou no século XIX que muitas línguas africanas do Sul do Sahara diziam "pessoa" usando basicamente a mesma palavra:
mantu, no singular, e bantu, no plural. Ele chamou a esses idiomas de "línguas bantus" e, por extenção, os próprios povos passaram a ser designados de "povos bantus". O que é estranho porque, à letra, se estaria dizendo que existe um conjunto de povos a quem se chama os "povos pessoas". Recordo-me de um tocador de mbira, um camaronês chamaso de Francis Bebey que encontrei na Dinamarca.Perguntei-lhe se tocava música bantu e ele riu-se de mim e disse: meu amigo, os chineses são tão bantus como os africanos.

De qualquer modo, a ideia de pessoa em África tem origem diferente e percorreu caminhos diversos da concepção europeia que hoje se globalizou. Na filosofia africana cada um é porque é os outros. Ou dito de outro modo: eu sou todos os outros. Chega-se a essa identidade colectiva por via da família. Nós somos como uma escultura
maconde ujaama (Ujaama significa Unidade), somos um ramo dessa grande árvore que nos dá corpo e nos dá sombra. Distintamente daquilo que é hoje dominante na Europa, nós olhamos a sociedade moderna como uma teia de relações familiares. Como veremos, esta visão tem dois lados: um lado positivo que nos torna abertos e nos conduz àquilo que é universal; e um outro lado, paroquial e provinciano que nos aprisiona na dimensão da nossa pequena aldeia.

A ideia de um mundo em que todos somos parentes é muito poética, mas pode ser pouco funcional. Todos conhecemos o discurso do moçambicano comum: o governo é o nosso pai, nós somos filhos dos poderosos. Esta visão familiar do mundo pode ser perigosa, pois convida à aceitação de uma ordem social como se ela fosse natural e imutável. A modernidade está soprando nos nossos ouvidos algo muito diverso que obriga a um rasgão dentro de nós. Ao contrário dos pais que não se escolhem, os dirigentes escolhem-se. A empresa e a instituição não são um grupo de primos, tios e cunhados. A sua lógica de funcionamento é impessoal e obedece a critérios de eficiência e rentabilidade que não se compadecem com compadrios de parentesco. Podem usar sapatos com ou sem meias furadas. Difícil é usar peúgas sem sapatos.

Temos que nos pensar num mundo em rápidas transformações. A velocidade de mudanças na sociedade moderna faz com que certas profissões se tornem rapidamente obsoletas. No Brasil, por exemplo, a computarização do Sector bancário reduziu 40 por cento dos empregos nos últimos sete anos. Isso implica mudanças dramáticas com impactos sociais graves. Estamos na crista da onda de mudanças que não são apenas tecnológicas.

Os telefones celulares são um exemplo de alguma coisa que deixou de ser apenas uma coisa, um simples objecto utilitário. Os telemóveis passaram a fazer parte de nós, tanto que, se nos esquecemos deles, ficamos vazios, desarmados como se tivéssemos deixado em casa um braço que não sabíamos que tínhamos. Esta subtil ocupação vai para além das nossas vidas privadas. O crime organizado, por exemplo, passou a ser comandado a partir das prisões. As notícias que se seguiram depois do julgamento do caso do assassinato de Carlos Cardoso mostraram-nos o que outros já sabiam. Prisioneiro não é o que está dentro das paredes gradeadas. Prisioneiro é quem não tem acesso ao telemóvel.

A própria noção de distância deixou de ser medida em termos de quilómetros. Queremos saber se para onde vamos há rede telefónica. O fim do mundo é onde não há cobertura de antena.

É verdade que as novas tecnologias não costuram os buracos na nossa roupa interior mas elas ajudam a alterar as redes sociais em que nos fabricamos. Em nuitas línguas africanas a palavra para dizer "pobre" é a mesma que diz "órfão". Na realidade, ser pobre é perder as redes familiares e de aliança social. Mora na pobreza quem perdeu o amparo da família. Num futuro muito breve, o verdadeiro órfão é aquele que não dispõe de computador, celular e cartão do Banco.

Mas nós vivemos uma sociedade que tem uma característica muito curiosa: aqui se glorifica o indivíduo mas se nega a pessoa. Parece um contra-senso mas não é. Afinal, há distâncias entre estas duas categorias: indivíduo e pessoa. O que nos faz ser pessoa não é o Bilhete de Identidade. O que nos faz ser pessoa é aquilo que não cabe no BI. O que nos faz pessoas é o modo como pensamos, como sonhamos, como somos outros. Estamos, enfim, falando de cidadania, da possibilidade de sermos únicos e irrepetíveis, da habilidade de sermos felizes.

Um dos problemas do nosso tempo é que perdemos a capacidade de fazermos as perguntas que são importantes. A escola nos ensinou a dar respostas, a vida nos aconselha a que fiquemos quietos e calados. Uma das perguntas que pode ser importante é esta: o que é que nos dificulta o caminho para transitarmos de indivíduos para pessoas? O que precisamos para sermos pessoas a tempo inteiro?

Não tenho pretenção de invocar as respostas certas. Mas tenho a impressão de que um dos principais problemas, um dos maiores buracos na nossa peúga, é pensarmos que o sucesso não é fruto do trabalho. Para nós o êxito, em qualquer área, surge como resultado daquilo que chamamos de boa sorte. Resulta de se ter bons padrinhos. O sucesso resulta de quem se conhece e não daquilo que se conhece.

Uma das edições do jornal "Notícias" desta semana abria com uma notícia sobre o monte Tumbine, na Zambézia. Em 1998, cerca de 100 pessoas morreram naquele lugar por causa de um abatimento de terras. As terras desabaram porque se retirou a cobertura florestal das encostas e as chuvas arrastaram os solos. Foram feitos relatórios com recomendações muito claras. Os relatórios desapareceram. A floresta voltou a ser cortada e as pessoas voltaram a povoar as regiões perigosas. O que resta de Tumbine são as vozes que têm uma outra explicação. Essas vozes insistemna seguinte versão: há um dragão que mora no Monte de Tumbine em Milange e que desperta de 5 em 5 anospara ir deitar os ovos no alto mar. Para não ser visto, o dragão cria o caos e a escuridão enquanto atravessa os céus desapercebido.

(Agora uma sugestão à parte e apenas para uma questão de conferência de assinaturas, se por acaso aparecer esta criatura num balcão do Banco: o dragão que voa no Norte chama-se Napolo e aqui, no Sul, chama-se Wamulambo. Mas é o mesmo cliente).

Existe uma poderosa força poética nesta interpretação dos fenómenos geológicos. Mas a poesia e as cerimónias dos espíritos não bastam para assegurar que uma nova tragédia não se venha a repetir.

A minha pergunta é: estamos nós aqui assim tão longe dessas crenças? O facto de vivermos em cidades, com arranha-céus, no meio de computadores e da internet de banda larga, será que tudo isso nos isenta de termos um pé na explicação mágica do mundo?

Basta olhar para os nossos jornais para termos a resposta. Junto da tabela da taxa de câmbio se encontra o anúncio do chamado médico tradicional, esse generoso personagem que se propõe resolver problemas básicos da nossa vida. Se percorrerem a lista dos serviços oferecidos por esses médicos tradicionais verificarão que figuram os seguintes produtos: (vou citar os feitos propagados, saltando os milagres conseguidos na saúde) faz subir na Vida; ajuda a promoção no emprego; faz passar no exame; ajuda a recuperar o esposo ou esposa. Parodiando a linguagem moderna dos relatórios, eu referi, um por um, os
outputs do job description do nosso glorioso médico tradicional. Numa palavra, o atirador de sortes faz surgir por magia tudo aquilo que só pode resultar do esforço, do trabalho e do suor.

De novo, interroguemos as palavras que nós próprios criamos e usamos. Na realidade, "médicos tradicionais" é um nome duplamente falso. Primeiro, eles não são médicos. A medicina é um domínio muito particular do conhecimento científico. Não há médicos tradicionais como não há engenheiros tradicionais nem pilotos de avião tradicionais. Não se trata aqui de negar as sabedorias locais, nem de desvalorizar a importância das lógicas rurais. Mas os anunciantes não são médicos e também não são tão "tradicionais" assim. As práticas de feitiçaria são profundamente modernas, estão nascendo e sendo refeitas na actualidade dos nossos centros urbanos.

(Um bom exemplo dessa habilidade de incorporação do moderno é o de anúncio que eu recortei da nossa imprensa em que um destes curandeiros anunciava textualmente: curamos asma, diabetes e borbulhas; tratamos doenças sexuais e dores de cabeça; afastamos má sorte e... tiramos fotocópias.)

Durante muito tempo, era interdito aos verdadeiros médicos fazerem publicidade nos órgãos de informação. E, no entanto, esses outros chamados de tradicionais tinham permissão de se anunciarem.

Porquê esta complacência? Porque, no fundo, nós estamos disponíveis para acreditar. Nós pertencemos a esse universo, mesmo que, em simultâneo, já pertençamos a outros imaginários. Não são apenas os pobres, os menos educados que partilham esses dois mundos.São quadros de formação superior, são dirigentes políticos que procuram a bênção para serem promovidos e para terem sucesso nas suas carreiras.

Não creio que seja eficaz simplesmente condenar essas práticas. Mas temos de as assumir com mais verdade. Regressandoao título desta palestra, temos que aceitar que, por debaixo da capa do sapato há uma espécie de ventilação especial nos nossos pés. De pouco vale a pena dizermos que se trata de coisas tipicamente africanas. Meus amigos, essas coisas existem em todo o mundo. Não fazem parte da chamada natureza exótica dos africanos. Fazem parte da natureza da pessoa humana. O que podemos dizer no nosso caso é que essas crenças possuem ainda um peso determinante. E esse peso entra em contradiçãocom algumas exigências do mundo de hoje. A crença na chamada boa sorte faz com que nos demitamos na nossa responsabilidade individual e colectiva. Esse é um problema central para o nosso desenvolvimento. Porque essa visão do mundo nos leva a explicar os nossos insucessos pela existência de uma mão escondida. Se falharmos é porque alguém tramou um mau-olhado. Não nos assumimos como cidadãos fazedores e responsáveis. Não produzimos o nosso destino: mendigamos a forças poderosas que estão para além de nós. Ficamos à espera da bênção e do bafejo da boa fortuna.

Tudo isto tem a ver com algo mais abrangente e mais sofisticado que é a teoria do
complot. Satisfazemo-nos em explicar tudo por razões de alguma conspiraçãourdida nas nossas costas. É o receio da feitiçaria conduzido para a análise política. O caso recente das madeiras é um bom exemplo da aplicação da teoria da conspiração. Um grupo de compatriotas nossos denunciou aquilo que consideravam ser a destruição eminente do nosso património florestal. O alerta era grave, podemos estar a perder não apenas parte do nosso meio ambiente mas estarmos desperdiçando uma das principais armas para combater a pobreza. A reacção contra este protesto não se fez esperar: artigos diversos apontam numa mesma direcção. A preocupação com as florestas provinha de um grupo bem intencionado mas manipulado por forças ocidentais que se mobilizam contra a presença chinesa em África. Eis a mão obscura que tudo comanda. Tal como na lógica da feitiçaria a identificação do malvado resolve, à partida, o problema. Levantadas todas as poeiras, esgrimidas todas as suspeições, o assunto das florestas deixará de ser visível. A pergunta é simples: não seria mais fácil criar uma comissão científica que inventariasse o verdadeiro estado actual e avaliasse as tendências de abate da nossa madeira? O assunto, meus amigos, é demasiado sério para fingirmos que estamos fazendo alguma coisa apenas porque levantamos a suspeita de uma conspiração internacional. A verdade é que se perdermos a floresta perdemos uma das maiores reservas de riqueza, o maior banco vivo do nosso território nacional

Caros amigos

Referi a ideia de má ou boa sorte como algo que mata a capacidade empreendedora, como algo que consolida o espírito da vítima. Referi esse convite constante para pensarmos que, para mudar o mundo, a única coisa que nos resta é pedir, lamentar e reclamar.

Faço uma outra confidênica. A empresa em que trabalho abriu um concurso para jovens que fizessem inquéritos nos bairros de Maputo. Concorreram centenas de jovens e parecia claro que as duas dezenas que conseguiram o lugar o defenderiam com unhas e dentes. Logo no primeiro ensaio, porém, uma meia dúvida se apresentou cheia de queixas e reivindicações: que não podiam trabalhar ao Sol, que o trabalho era muito cansativo e necessitavam de mais repouso, que precisavam de um subsídio para comprar chapéus e sombreiros... Este espírito, meus amigos, é o de uma nação doente. Um país em que os jovens pedem antes de darem qualquer coisa é um país que pode ter hipotecado o seu futuro.

O que eu noto é que, a par de uma abnegação limitada, nós sofremos ainda do complexo de que merecemos mais que os outros porque sofremos no passado. A História está em dívida connosco, é isso que pensamos. Mas a História tem dívidas com todos e não paga a ninguém.
Não recomendo a ninguém que deixem que a História abra conta nos vossos balcões. Não houve povo que não sofresse, em algum momento, terríveis prejuízos. Nações inteiras foram reduzidas a escombros e renascem por causa do trabalho e esforço de gerações. O nosso próprio país foi capaz de se afastar das cinzas da guerra. Invocar o passado para que se tenha pena de nós e ficar à espera que alguém nos compense é pura ilusão.

Como sobrevivemos à custa de favores pedimos ao mundo que nos faça favores e nos conceda privilégios e compensações especiais. Esse posicionamento de vítimas a quem o Mundo tem que pagar uma dívida sucede como nação e como cidadãos. Ou nós as conquistamos ou nunca chegaremos lá. O valor de Lurdes Mutola deriva de ela ter vencido todo um historial de dificuldades. Imaginemos que Lurdes Mutola, em lugar de treinar a sério, faria a exigência de partir uns metros à frente das suas adversárias, argumentando que era pobre e vinha de um país martirizado. Mesmo que ela ganhasse, a sua vitória deixaria de ter qualquer valor. O exemplo parece ridículo mas é este exercício do "coitadismo" que praticamos vezes sem conta. A solução para o desfavorecido não é pedir favores. É lutar mais do que outros por um mundo onde não sejam precisos mais favores.

Um outro buraco nas nossas peúgas (este é um buraco do tamanho da própria peúga) é a nossa tendência de culpabilizar os outros pelos nossos próprios erros. Perdemos o empergo não porque faltamos consecutivamente sem justificação. Perdemos a namorada (ou namorado) não porque amamos pouco e mal. Reprovamos no exame mas não foi nunca por falta de preparação. Esses deslizes são por nós explicados pela evocação de demónios cuja existência é profundamente cómoda. A construção de diabos é, afinal, um investimento a prazo: a nossa consciência pode dormir à sombra dessas ilusões.

Esta não é doença exclusivamente nossa. Nos dias de hoje, estamos assistindo a um dramático exemplo dessa fabricação de fantasmas: diariamente no Iraque se matam civis inocentes em nome de Deus, em nome da luta contra um demónio que são os outros. José Saramago disse: "Matar em nome de Deus faz desse Deus um assassino."

Vivemos ainda sentimentos de profunda intolerância religiosa, étnica e racial. É muito mais fácil a explicação mentirosa de que os culpados são os outros, os da outra raça, os da outra religião, do que aceitar que precisamos de mudar tanto como os outros.

E regressamos à questão da pessoa humana. Ao longo da História, as operações de agressão aos outros começam por curiosamente por despessoalizar esses mesmos outros. Por assim dizer esses - os inimigos - não são pessoas humanas como nós. A primeira operação na guerra dos EUA contra o Vietname não foi de ordem militar. Foi de ordem psicológica e consistiu em desumanizar os vietnamitas. Eles já não eram humanos: eram amarelos, eram seres de outra natureza sobre os quais não haveria problema de ética em lançar bombas e
napalm.

O genocídio no Ruanda foi aqui perto e não muito distante no tempo. Comunidades que conviviam em harmonia foram manipuladas por elites criminosas ao ponto de se ter cometido o maior massacre da história contemporânea. Se antes de 1994 perguntássemos a um tutsi ou a um hutu se acreditava que aquilo poderia acontecer no seu país eles declarariam que isso era inimaginável. Mas sucedeu. E sucedeu porque a capacidade de produzir demónios é ainda muito grande nos nossos países. Quanto mais pobre é um país maior é a capacidade de se destruir a si mesmo.

A partir de Abril de 1994 e durante 100 dias consecutivos mais de 800.000 tutsis foram assassinados pelos seus compatriotas Hutus. Machados e catanas foram usados para chacinar 10.000 pessoas por dia, o que dá uma média de 10 pessoas por minuto. Nunca na História humana se matou tanto em tão pouco tempo. Toda esta violência foi possível porque se tinha trabalhado para provar, uma vez mais, que os outros, não eram pessoas humanas. O tempo escolhido pela propaganda Hutu para falar dos Tutsis era de
cockroaches, baratas. A matança estava assim isenta de qualquer objecção moral, estava-se matando insectos e não pessoas humanas, compatriotas falando a mesma língua e vivendo a mesma cultura.

No vizinho Zimbabwe, o discurso da unidade que marco o início de uma sociedade multiracial foi, subitamente alterado para uma agressão marcadamente racista. O Vice-Presidente do Zimbabwe, Jospeh Msica, num comício na cidade de Bulawayo disse textualmente: "Os brancos não são seres humanos". Ele apenas estava repetindo o que Robert Mugabe já havia proclamado. E eu cito as palavras de Mugabe: "O que odiamos nos brancos não é a sua pele mas o demónio que emana deles". Os dirigentes da ZANU tinham-se distinguido, poucos anos antes, como defensores de uma nação multi-racial. O que tinha mudado? Mudou o jogo de forças. A ambição pelo poder rpovoca mudanças surpreendentes nas pessoas e nos partidos.

Estamos certos que, em Moçambique, essas nuvens sombrias são distantes e pouco prováveis de alguma vez acontecerem. Esse é um motivo de orgulho no presente e de confiança no futuro. Mas esta certeza necessita de que não esqueçamos as lições de uma história que é também a nossa.

Caros amigos

Pediram-me que falasse da pessoa humana. É um universo vasto, sem limites de quem ninguém se pode dizer especialista. Fui forçado a escolher uma pequena parcela dessa tela infinita. Falei deste mal é que a demissão das nossas responsabilidades, da deserção das nossas capacidades. Falei da dependência de um modo de vida em que tudo se consegue por favores, por cunhas e benesses.Falei de tudo isto porque o sistema bancário é profundamente vulnerável e permeável a este tipo de situações.

A nossa verdadeira questão enquanto nação é sermos capazes de produzir mais riqueza. Mas não congundirmos riqueza com dinheiro fácil. Uma certa vez fiz uma intervenção sobre essa obsessão de enriquecer rapidamente e de qualquer maneira. Fui atacado pelo argumento demagógico de que eu não queria ver moçambicanos ricos. Eu termino hoje reiterando aquilo que sempre defendi. O meu anseio não é apenas ver moçambicanos ricos no verdadeiro sentido da palavra riqueza. O meu anseio é ver todos os moçambicano partilhando de uma mesma riqueza. Só essa riqueza nos fará mais pessoas e mais humanos.


Mia Couto

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